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Aprovar Reforma Administrativa é assinar um cheque em branco, diz assessor jurídico

Postagem atualizada em 15/06/2021 às 11h53

Live do Sinasefe Santa Maria esclareceu principais pontos trazidos no texto da PEC 32, que inaugura a Reforma

A aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/20 pelo Congresso Nacional significaria condenar a população brasileira a assinar um cheque em branco. Isso porque a proposta representa apenas a primeira fase de implementação da Reforma Administrativa, sendo sucedida de mais duas etapas que poderiam trazer uma série de leis complementares responsáveis por autorizar o desmantelamento de direitos constitucionais até então resguardados.

“Não sabemos quais serão os desdobramentos da PEC nas outras fases. A partir do momento em que a Constituição Federal é alterada, as consequências podem ser inenarráveis”. A análise é do assessor jurídico Heverton Padilha, que participou da live promovida pelo Sinasefe Santa Maria na última quinta-feira (10/06). Com ele estiveram, também, o professor Moacir Bolzan, vice-diretor do Colégio Politécnico, e a professora Adriana Bonumá, Secretária de Assuntos Legislativos e Jurídicos do sindicato local.

Num primeiro momento, Padilha desconstruiu alguns argumentos falaciosos apresentados pelo governo Bolsonaro e seus ministros para justificar a aprovação da Reforma. Um deles diz respeito a um suposto inchaço do Estado brasileiro, que seria responsável por empregar uma quantidade muito grande de servidores públicos.

Contrapondo este argumento, o assessor jurídico trouxe dados que atestam estabilidade no número de nomeações ao longo dos anos, bem como uma proporção de servidores públicos pequena se comparada com a totalidade da população empregada no Brasil – segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), apenas 12,1% da população brasileira ocupada é composta por servidores públicos. Esse número é significativamente mais baixo que o observado em países como França (21,4% de servidores) e Dinamarca (29,1%).

Combate aos privilégios?

Junto ao argumento de que o Estado brasileiro é inchado de servidores públicos morosos e ineficientes, o governo Bolsonaro também vende a ideia de que a Reforma Administrativa vem para combater os supostos privilégios do funcionalismo público. Mais uma vez, Padilha demonstra, através de uma análise do texto da Reforma, que o cenário é exatamente o contrário: ao invés de dirimir privilégios, a Reforma os reforça.

A principal prova disso é que algumas categorias são excetuadas das alterações previstas pela PEC da Reforma, a exemplo dos magistrados, dos integrantes do Ministério Público, dos parlamentares e dos militares. A justificativa do governo para “poupar” essas camadas é de que seriam agentes de poder cujas carreiras são disciplinadas por leis complementares. Padilha, no entanto, avalia que se trata de uma escolha política do governo. “Estamos falando de uma profunda reforma na Constituição. Não haveria, a priori, barreiras para isso”, pondera o assessor.

Ainda que a Reforma fosse aprovada, os integrantes da alta cúpula do governo continuariam a receber rubricas como as referentes ao auxílio paletó ou auxílio moradia, além das verbas de gabinete e o chamado “cotão” – cota para exercício das atividades parlamentares, com característica indenizatória e no valor de até R$ 45 mil reais. No que tange ao Judiciário, seus integrantes também seguiriam tendo acesso a benefícios como o auxílio moradia para aposentados, por exemplo.

Enquanto preserva essas benesses, contudo, a Reforma joga a esmagadora maioria dos servidores públicos para uma realidade de contratos de trabalho precários, redução remuneratória, extinção da estabilidade e do Regime Jurídico Único, além de facilitar perseguições político-ideológicas.

Eixos elementares

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32 não é, por si só, a Reforma Administrativa. Trata-se, na verdade, de um instrumento que, se aprovado, viabilizará as outras etapas da Reforma (fase regulatória e fase da lei complementar das carreiras).

No entanto, a PEC já expressa os eixos elementares da Reforma pretendida. São sete pontos que alicerçam todo o projeto de Estado contido na proposta:

1 – Dificuldade de acesso à estabilidade. Padilha explica que só as carreiras típicas de Estado manteriam esse direito. Todo o restante do funcionalismo (a considerável maioria) já não teria acesso;

2 – Estabelecimento da avaliação de desempenho. Tal avaliação irá acompanhar o servidor público durante toda a sua vida laboral, sendo utilizada como condição para garantir a permanência ou não no cargo. Podem ser aplicadas aos atuais servidores – e não somente àqueles que ingressarem depois da aprovação da Reforma;

3 – Possibilidade de extinção do Regime Jurídico Único (RJU). Padilha explica que o RJU, da forma como o conhecemos hoje, não coexiste com a Reforma. Logo, a extinção do RJU seria uma consequência lógica da aprovação da reforma;

4 – Redução da remuneração média no decorrer da carreira, principalmente para servidores estaduais e municipais;

5 – Ampliação da contratação de servidores temporários e possível aumento de terceirizações;

6 – Facilidade para privatizações. “A privatização é o mote da Reforma. Aquilo que é rentável no serviço público deve ir para a iniciativa privada”, destaca Padilha;

7 – Relativização do concurso público, ferindo o princípio de impessoalidade.

Novos cargos e vínculos

Como já mencionado, a Reforma Administrativa, se aprovada, tenderá a extinguir o RJU tal como hoje o conhecemos. Em seu lugar, institui três novos tipos de cargo e dois novos tipos de vínculo. São eles:

  • Cargo Típico de Estado. Tais cargos serão reservados a postos considerados estratégicos no setor público, explica Padilha. A definição do que será estratégico não consta no texto da PEC, devendo ser feita na segunda fase da Reforma, a fase regulatória, embora o Ministério da Economia já tenha citado carreiras ligadas às áreas de segurança e fiscalização como aquelas a serem consideradas prioritárias. Aqui, o ingresso é via concurso público e a posse do servidor ocorre após o período do vínculo de experiência, que, para este cargo, tem a previsão de dois anos. Esse é o único cargo que, com a aprovação da Reforma, manterá a estabilidade. Porém, o tempo necessário para se alcançar a estabilidade é de três anos – após concluído o vínculo de experiência, será necessário mais um ano para adquirir o direito. Ainda assim, tais servidores podem ser demitidos mais facilmente que na atualidade, como explicitado mais abaixo. Esse cargo é vinculado ao Regime Jurídico Único e recolhe contribuição para o Regime Próprio de Previdência;
  • Cargo por prazo indeterminado. Avaliado por Padilha como uma “aberração jurídica”, tal cargo seria destinado a servidores considerados de apoio administrativo, sendo aqui possivelmente enquadrados a maioria dos cargos de servidores da Administração Pública do país, a exemplo de professores e técnico-administrativos em educação. O ingresso é via concurso público e não há previsão de estabilidade. A posse ocorre ao final do vínculo de experiência, cuja duração, para esse cargo, é de um ano, podendo ser alterado a critério de cada Administração. O servidor é vinculado ao Regime Jurídico Único, porém também passível de ser mais facilmente demitido do que nas regras atuais;
  • Vínculo de experiência. A natureza jurídica de tal vínculo é bastante diferente da que rege o atual estágio probatório. Se a Reforma for aprovada, ocorrerá a seguinte situação: serão convocadas para o serviço público mais pessoas que o número de vagas previsto para determinado cargo. Isso significa que o vínculo de experiência funcionaria quase como um prolongamento do concurso público, pois, ao final deste período, só seriam nomeados alguns servidores.  A previsão do vínculo de experiência existiria para dois cargos: o cargo típico de Estado (vínculo com prazo de dois anos) e o cargo por tempo indeterminado (vínculo, a priori, de um ano).
  • Vínculo de prazo determinado. O vínculo do servidor seria com a Administração, mas regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Não há previsão de estabilidade. São contratações por prazos temporários, para fins de necessidades temporárias em decorrência de calamidade, emergência, paralisação das atividades essenciais (em uma greve, por exemplo, o governo poderia contratar trabalhadores precarizados para dar conta do trabalho paralisado pelo movimento paredista) ou acúmulo transitório de serviço. Tais servidores contribuiriam para o Regime Geral de Previdência.
  • Cargo de liderança e assessoramento. Para ocupar este cargo, não seria necessária a aprovação em concurso público, sendo realizada, em seu lugar, uma seleção simplificada que ficaria a critério dos gestores. Atualmente, o servidor que ocupa cargos dessa natureza tem de já possuir cargo efetivo naquela determinada carreira. A partir da aprovação da PEC, não seria necessária tal vinculação prévia, podendo ser nomeado qualquer servidor – inclusive, por exemplo, militares, para ocuparem cargos dentro da universidade.


Demissões facilitadas

Hoje, o servidor público pode ser demitido como forma de penalidade a alguma conduta, mas há o direito à ampla defesa em todas as etapas do processo. Com a Reforma, a demissão do servidor poderá ser atribuída a três motivos: decisão judicial, processo disciplinar ou insuficiência na avaliação de desempenho. As duas principais mudanças residem no âmbito da decisão judicial e da avaliação de desempenho.

No que se refere à esfera da justiça, a demissão do servidor, que hoje só pode ser efetivada com o trânsito em julgado do processo, poderá, se aprovada a Reforma, já ocorrer após a primeira decisão colegiada. Isso torna muito mais fácil que o servidor seja demitido e desmonta as garantias legais de ampla defesa até então preservadas.

Já em relação à avaliação de desempenho, esse é um instrumento novo que será um condicionante para a permanência do servidor no cargo, podendo ser aplicado inclusive para aqueles servidores já efetivos quando da entrada em vigência das novas normas. Ou seja: o governo é falacioso quando diz que os atuais servidores não serão atingidos pela Reforma Administrativa.

Vulnerabilidade política

No serviço público regido pela Reforma Administrativa, coexistiriam servidores estáveis (uma minoria) e não estáveis (ou com uma estabilidade extremamente frágil e suscetível, por exemplo, a avaliações de desempenho elaboradas por chefias). Sabe-se, contudo, que a estabilidade não é uma benesse. Como destacou Padilha, não se trata de uma proteção descomunal ao servidor, mas de uma proteção ao próprio serviço público.

“Se não tivéssemos a estabilidade, será que teríamos um ministro de Estado hoje investigado pela Polícia Federal em razão de vários crimes cometidos contra o meio ambiente, como exportação ilegal de madeira, atrapalhar fiscalização ambiental ou até mesmo organização criminosa? Isso ocorre em razão de termos servidores estáveis. Se a estabilidade for retirada, como acontecerá no futuro?”, questiona o assessor jurídico, referindo-se ao fato de que a estabilidade garante ao servidor a protetividade necessária para, por exemplo, denunciar situações de corrupção, sem temor a represálias. 

Outra importância da estabilidade refere-se à capacidade de pressão dos servidores em processos de negociação salarial com o governo federal. “Os servidores atuais que poderão discutir com o governo por terem estabilidade vão se aposentando. E nós sabemos que o governo não negocia com os aposentados. Então teremos uma vulnerabilidade grande em relação às políticas com o governo”, destaca Padilha. Afinal, vínculos de trabalho precários, como os previstos pela PEC, não conferem segurança e força política necessária para o enfrentamento com o governo.

O desmonte do Estado mínimo

Moacir Bolzan, vice-diretor do Colégio Politécnico da UFSM, se dedica, já há algum tempo, a estudar sobre as concepções de Estado hegemônicas em cada momento e os diferentes projetos de lei que vêm para reforçar ou reestruturar aspectos centrais desse Estado.

Para o docente, a Reforma Administrativa, além de afrontar as necessidades atuais da população, que precisa de trincheiras fortes para conter o avanço da COVID-19 no Brasil, também torna ainda mais precário um Estado que já é mínimo.

“Eu não sei o que vai sobrar. Vamos eliminar definitivamente a ideia do Estado como uma forma de proteção social, convertendo o cidadão em consumidor. Isso é profundamente lamentável. Essa desconstitucionalização dos serviços públicos é muito preocupante”, analisa Bolzan, lembrando que a Reforma Administrativa caminha ao lado de outros projetos (já aprovados), como a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência.

Adriana Bonumá, Secretária de Assuntos Legislativos e Jurídicos do Sinasefe Santa Maria, acredita que é o momento de envolver a população usuária dos serviços públicos na mobilização contra a Reforma Administrativa. “Como vamos fazer com que a população compreenda o prejuízo social que essa Reforma traz? Porque não é um prejuízo só para o servidor, mas para a população como um todo. Muitos serviços que temos hoje não vão mais existir ou estarão totalmente precarizados a partir dessa reforma. É preciso mostrarmos que não se trata só de nossos empregos e de nossas colocações dentro do serviço público. Vai muito além disso”, conclui a dirigente.

Heverton Padilha também aposta na mobilização para impedir que a proposta avance entre os parlamentares.

Tramitação

A PEC 32/20, que inaugura a Reforma Administrativa, precisa de aprovação, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, de três quintos de seus respectivos componentes. Na Câmara, isso representa 308 votos. No Senado, 49. Em ambas as Casas, o texto tem de ser aprovado em dois turnos pelo plenário e, antes disso, pelas Comissões de Constituição e Justiça (CCJ) e pelas comissões especiais.

Atualmente, a PEC tramita na Câmara e já foi aprovada, com algumas alterações, pela CCJ. Agora, o texto segue para análise de uma comissão especial instituída pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).

“Temos que agir agora. É momento de mobilização, de pressionar a categoria política para que essa questão não avance e se tenha um debate mais aprofundado com a sociedade”, defende Padilha.

O Sinasefe Santa Maria vem atuando em conjunto com outros sindicatos locais no sentido de construir a mobilização contra a Reforma Administrativa na cidade de Santa Maria-RS. No próximo dia 19 de junho, nova mobilização contra o governo Bolsonaro está marcada e, na pauta de reivindicações, a rejeição à Reforma assume centralidade. Na cidade gaúcha, o protesto ocorre a partir das 10h, na Praça Saldanha Marinho. Quem não conseguiu acompanhar a live pode conferir o material no Canal de YouTube da SS Santa Maria ou em sua página de Facebook .

Matéria e imagens: Bruna Homrich para Seção Santa Maria

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