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Insegurança e adoecimento psicológico atingem servidores públicos federais

Postagem atualizada em 12/02/2021 às 0h58

Escalada de ofensas, constrangimentos e ameaças aos direitos por parte do governo e de parlamentares causam fenômeno coletivo no funcionalismo: o assédio institucional está se tornando uma política de Estado

Servidores Públicos Federais (SPFs) enfrentam uma onda de adoecimentos psicológicos frente a determinadas declarações e ações do governo federal e de parlamentares do Congresso Nacional. Diferentemente do assédio moral, o chamado assédio institucional não está direcionado a indivíduos ou pequenos grupos e já passa a ser alvo de estudo e análise por parte de especialistas em saúde do trabalho, juristas e representantes das categorias.

O comportamento parte do Estado como organização, na figura de seus representantes, inclusive os eleitos. O problema acontece nas relações institucionais das organizações e extrapola a dimensão individual e laboral. Ou seja, o assédio não tem como vítima um trabalhador específico, mas se traduz na desvalorização completa de todo o trabalho dos SPFs.

Se antes, com salários congelados e corroídos pela inflação os argumentos usados para depreciar as lutas dos servidores eram “marajás” e “privilegiados”, agora os termos estão mais agressivos, como “parasitas”.

“Tem a ver com o constrangimento público que, por exemplo, está em curso na relação entre o Ministério da Economia, representado pelo ministro Paulo Guedes, e uma organização como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que tem uma vinculação institucional com o Ministério”, afirma José Celso Cardoso Junior, do Afipea-SN.

“Obviamente que tem uma hierarquia, mas isso não autoriza o ministro a desqualificar o trabalho técnico realizado por esse órgão. O próprio ministro da economia e o Presidente da República desqualificam, por meio de declarações e entrevistas, os resultados de pesquisas tecnicamente amparadas e internacionalmente reconhecidas. É um assédio de caráter coletivo”, completa.

A Afipea vem se dedicando a estudar e questionar as diretrizes e os impactos das propostas de Reforma do Estado. Já há publicações disponíveis nesse sentido, como os livros “Desmonte do Estado e Subdesenvolvimento – Riscos e Desafios Para as Organizações e as Políticas Públicas Federais” e “Mitos Liberais Acerca do Estado Brasileiro e Bases para um Serviço Público de Qualidade” e as cartilhas “Reforma Administrativa do Governo Federal: Contornos, Mitos e Alternativas” e “O Lugar do Funcionalismo Estadual e Municipal no Setor Público Nacional”.

José Celso faz parte do grupo que reúne outros estudiosos, além de juristas e representantes de categorias profissionais, para analisar o fenômeno do assédio institucional. Os resultados dessas análises estão no livro “Erosão de Direitos: Reformas Neoliberais e Assédio Institucional”.

Celso afirma que a realidade não é pontual e se espalha pelos órgãos públicos. “Existem dois níveis do problema. O assédio institucional organizacional acontece quando o governo desqualifica um órgão público, a exemplo do que tem acontecido com Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Fundação Nacional do Índio (Funai), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e muitos outros. O segundo nível é derivado desse, e envolve os próprios servidores, que estão sendo diretamente constrangidos no desempenho de suas funções. Um exemplo: o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE), responsável por produzir estatísticas de desmatamento, foi desautorizado a continuar produzindo o dado e os servidores foram constrangidos, chamados de subversivos, entre outros termos.”

O representante da Afipea ressalta também que a perversidade desse tipo de assédio é diferente do que é registrado na iniciativa privada: “você já viu uma organização privada ir a público para falar mal de suas empresas, afiliadas ou de todo o conjunto de seus funcionários? É um caso muito grave porque não só coloca em risco a existência dessas organizações, dessas práticas consolidadas e dessas políticas públicas, como coloca em dúvida a própria idoneidade dos servidores.”

Ofensas históricas no governo Bolsonaro

No caso do governo Bolsonaro, o comportamento que tem como alvo os servidores é observado desde antes da sua eleição, em 2018.

Ainda durante a campanha, ele chamou o serviço público de “fábrica de marajás” e se referiu ao funcionalismo como “o grande problema da Previdência no Brasil”. O então candidato afirmou diversas vezes que iria privatizar ou extinguir estatais que, nas palavras dele, “dão prejuízo”.

Na lista de empresas que o governo pretende desestatizar, no entanto, estão estatais que registram lucro. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), por exemplo, fechou o ano de 2018 com lucro líquido de R$ 161 milhões.

No mesmo ano, o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) – responsável pelos dados digitais de todos os brasileiros – teve lucro de R$ 459,70 milhões, um aumento de 273,41% em comparação a 2017. O resultado positivo da Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev) subiu mais de 10% no período.

Além de estarem na lista de órgãos públicos que devem ser privatizados, essas e outras empresas compartilham um número crescente de servidores com relatos que remetem às consequências do assédio institucional. Esses relatos mostram uma situação generalizada e que se agrava diariamente.

Correios

No fim de 2019, o governo deu mais um passo para a privatização da ECT e autorizou a contratação de estudos e pareceres para avaliação do processo.

A venda da ECT é considerada uma das mais polêmicas e complexas da lista de desestatização do governo. Isso porque 100% dos municípios brasileiros são atendidos pela empresa.

Além do risco de que parte dessas cidades fiquem desassistidas por serem consideradas pouco lucrativas, a privatização pode causar a demissão de mais de 40 mil trabalhadores.

O presidente do Sintect-SP e vice-presidente da Findect, Elias Cesário, afirma que existe um processo de piora das condições de trabalho que atinge diretamente a saúde mental dos funcionários.

A percepção é de que há a intenção de que o desgaste dos servidores seja mais um incentivo à privatização.

“Qual é o jogo da empresa e do governo? Ele quer que o próprio trabalhador comece a falar mal da empresa. Eles estão fazendo com que tudo de ruim aconteça ao trabalhador, sucateando, fora a questão de convênio médico e de salário. Eles querem que o próprio funcionário, de dentro para fora, fale mal da empresa para a população para gerar descrédito e acabar com a empresa. É um plano estratégico e maldoso.”

O relato de Cesário se traduz em casos com o de Francisco da Silveira, carteiro há vinte anos. Ele foi assaltado e agredido durante o trabalho e não foi retirado da área em que a violência aconteceu. Francisco relata que não recebeu apoio dos seus superiores. Segundo ele, o clima de incerteza é geral entre os trabalhadores: “eles têm colocado a gente para cobrir o buraco de outras unidades. É aí onde entra essa questão do nosso psicológico. Mandam a gente para lugares que a gente não conhece, não conhece o setor, não conhece o sistema de trabalho e ainda nos falam: ‘Se você não está satisfeito, meu colega, as portas estão abertas'”.

Casa da Moeda

Responsável por toda a produção de moeda corrente do Brasil, assim como dos passaportes e dos selos de controle dos cigarros, por exemplo, a Casa da Moeda existe desde 1694. A inclusão da casa da instituição na lista de privatizações preocupa, porque em quase todas as grandes economias do mundo as casas da moeda são órgãos estatais.

De acordo com o presidente do Sindicato Nacional dos Moedeiros, Aluízio Júnior, o trabalhador do órgão sempre sofreu pressão por trabalhar com a produção de um bem tão sensível e essencial. Por conta disso, a Casa da Moeda conta com um serviço social que realiza acompanhamento dos trabalhadores.

O dirigente sindical relata, no entanto, que desde 2017 os trabalhadores sofrem pressão para aderir a planos de demissão voluntária e são ameaçados pela perda do emprego e de direitos.

“Por uma política de governo, começou-se a desmontar as estruturas da Casa da Moeda, que vinham dando muito certo e produzindo muito lucro para poder, num segundo momento, justificar a privatização. Os trabalhadores sofreram muito com isso, porque você viveu um momento de prosperidade, depois um momento de desmonte. A lógica da política do governo é enxergar no trabalhador o grande culpado disso e houve um ataque direto. A questão psicológica dos trabalhadores foi muito abalada.”

Ibama e ICMBio

Responsáveis pela execução da Política Nacional do Meio Ambiente, pela fiscalização, licenciamento ambiental e por programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e das Unidades de Conservação federais, Ibama e ICMBio são alvos frequentes do próprio Jair Bolsonaro.

Uma das últimas ameaças do Presidente veio em reclamação ao andamento do processo de licenciamento ambiental para uma loja da rede Havan em Rio Grande-RS. Bolsonaro, amigo do dono da rede, Luciano Hang, considerou que a autorização estava “demorando para ser finalizada”.

A pressão aos servidores veio com uma lembrança dos tempos da Ditadura Militar que é recorrente no discurso de Bolsonaro: “O Presidente têm mandato, porque se não tivesse eu cortava a cabeça mesmo. Quem quer atrapalhar o progresso vai atrapalhar na ponta da praia, aqui não”. – por “ponta da praia” Bolsonaro se refere à Base da Marinha do Brasil na Restinga de Marambaia (no estado do Rio de Janeiro), para onde eram encaminhados opositores do Regime Militar. Um local de onde normalmente não se saía vivo.

A Ascema Nacional denunciou a fala a autoridades no Brasil e em Fóruns Internacionais, com o intuito principal de proteger a integridade física dos servidores.

A secretária executiva da Ascema, Elisabeth Uema, afirma que mesmo com atuação da entidade, a pressão sobre os servidores tem causado muitos prejuízos.

“Na área ambiental há uma grande pressão em cima dos servidores, apesar de ela ser ainda uma área em que as pessoas são muito apaixonadas pelo que fazem. Isso nós também estamos perdendo, porque as pessoas estão cada vez mais desesperançadas. É muito difícil, principalmente para os trabalhadores que estão na ponta, atuarem. Tem cada vez menos gente e com toda uma pressão partindo inclusive de quem deveria estar nos apoiando, que são os dirigentes.”

Infraero

Em 2020, o governo ainda pretende realizar o leilão de 22 aeroportos e, até 2022, todas as estruturas do país devem passar para a iniciativa privada. Apesar das afirmações de que a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) não será privatizada, os leilões dos aeroportos certamente representarão mudanças substanciais no órgão.

Muitos desses aeroportos receberam investimentos milionários para reformas e, segundo o diretor administrativo da Anei, Alex Fabiano Viana, estão sendo vendidos a preços que significam prejuízo ao dinheiro público frente ao que foi gasto.

“Como explicar para o trabalhador, que veste a camisa e está ali mantendo o país ligado pelos aeroportos diuturnamente? Porque nós trabalhamos com escala, como você explica determinadas coisas? Não tem como explicar. Quando não existe uma explicação, existe o autoritarismo, a ditadura. É por isso que muitos trabalhadores estão adoecendo. Além dessa iminente possibilidade de demissão em massa.”

Rolo compressor e destruição do Estado

O pesquisador José Celso Cardoso Junior avalia que a série de ofensas aos servidores, o constrangimento público e a desmoralização das instituições fazem parte da construção de um discurso que tem objetivo definido: destruir a imagem do funcionalismo, abusando de elementos que questionam a competência e a utilidade desses trabalhadores.

“Tudo isso está sendo usado como argumento do governo para justificar uma Reforma Administrativa que vai acabar com as relações entre Estado e sociedade. Vai destruir o Estado.”

Segundo o pesquisador, o medo também toma conta da categoria. Diante das ameaças de retaliação, uma censura indireta se espalha pelos órgãos públicos.

“As pessoas estão se sentindo desmotivadas para o trabalho, com medo do ambiente de trabalho, porque não podem falar nada fora do script do atual governo, porque logo são identificadas como alguém que precisa ser eliminado.”

José Celso descreve um cenário cada vez mais recorrente e assustador. “A sensação é de que estamos vivendo uma guerra dentro do aparelho do Estado em que o objetivo não é conduzir um processo de reorientação estratégica, é um projeto de destruição. Por isso que a gente chama esse governo de fascista, porque o objetivo dele é eliminar o outro. Não é conviver com o outro, é eliminar o outro. Isso está acontecendo dentro da estrutura de Estado.”

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*Com informações de matéria do Brasil de Fato