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O (novo) médico e o monstro

Postagem atualizada em 12/07/2020 às 19h10

Na tarde de ontem (16/04), Bolsonaro pôs fim a uma novela que já durava quase um mês e que todos sabiam qual seria o seu final: demitiu o político e ortopedista Luiz Henrique Mandetta (que estava em seu governo desde o início) do cargo de ministro da saúde e nomeou para seu lugar o empresário e oncologista Nelson Teich (que participou da sua campanha e da transição governamental em 2018).

Mas o que era pra ser um anúncio de troca de chefia no ministério se tornou uma tempestade de sandices a partir da fala de Bolsonaro para apresentar o novo ministro.

Se mostrando inábil no uso das próprias palavras, sem condições sequer de formular frases sem fazer pausas, Bolsonaro fez proselitismo político, repetindo as bobagens negacionistas e anticientíficas que já havia dito em pronunciamentos nos dias 24/03, 31/03 e 08/04 – e, assim como nas três vezes anteriores, foi silenciado nas janelas e ruas por panelaços e buzinaços contrários ao seu posicionamento político irresponsável e assassino!

Só que dessa vez o Presidente conseguiu ir ainda mais longe em sua crueldade, chegando a admitir que o povo pobre tem mesmo que morrer com a COVID-19 para salvar a economia: “essa grande massa de humildes não tem como ficar presa dentro de casa (…), é como um paciente que tem duas doenças, não podemos abandonar uma e tratar a outra porque no final da linha esse paciente pode perder a vida”, disse em tom de crítica ao isolamento social determinado por vários governadores e prefeitos.

Em meio à maior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos, demitir um ministro da saúde que está em atividade e colocar outra pessoa para reiniciar os trabalhos da pasta não tem como ser visto como uma boa estratégia. E o pior: colocar outra pessoa que passou a vida inteira ligada à saúde privada e que não conhece a realidade da sistema público de saúde; uma pessoa que nada entende sobre o jogo político no meio de uma crise política do governo contra os demais poderes.

O próprio Presidente admitiu que não iria demitir Mandetta “no meio da guerra”. Mas Bolsonaro não se mostrou preocupado com essa nova crise que ele gerou porque ele sequer entende a crise em curso, já que considera a COVID-19 uma “gripezinha”. Em poucos dias, infelizmente, teremos pessoas morrendo nas ruas e residências por conta do sistema de saúde estar começando a colapsar – como no caso do Ceará. E Bolsonaro se mostrou mais preocupado com a economia, a reabertura do comércio e a revigoração dos lucros dos empresários do que com a saúde e a vida das pessoas. Em seu discurso, a impressão passada é de que ele estava nomeando um novo ministro da economia ou do trabalho, mas não da saúde!

A COVID-19 tem taxa de disseminação bastante elevada e requer tratamento com leito de UTI para casos graves. Quem não entendeu isso e fez pouco caso do vírus está pagando uma conta muito alta hoje. Basta ver os exemplos de Milão na Itália, dos Estados Unidos com o negacionismo trumpista, da Inglaterra de Boris Johnson… todos estão envergonhados e arrependidos das escolhas que tomaram meses atrás. Graças aos erros que cometeram, esses três países já sepultaram mais de 72 mil mortos – números que ainda crescem a cada minuto.

Aqui no Brasil a situação só não está pior graças aos decretos de prefeitos e governadores que fecharam o comércio, mantiveram apenas serviços essenciais em funcionamento e impuseram à população o isolamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Mandetta surfou na onda da OMS e nas ações dos governadores, se alçando ao posto de “defensor da saúde pública, da vida e da ciência” durante a crise – coisa que nunca foi anteriormente! Vale lembrar que ele chegou ao Ministério acabando com o Mais Médicos e propondo a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS).

Sai Mandetta, entra Teich. O que muda? Nada. O discurso de Teich feito ontem, apesar dele se dizer “totalmente alinhando com Bolsonaro”, é uma reedição do que Mandetta dizia nas suas coletivas de imprensa. De fato, para o que Bolsonaro quer (reabrir o comércio e expor as pessoas ao risco da contaminação), Teich ou Mandetta não possuem autonomia para fazê-lo, visto que o Supremo Tribunal Federal (STF) deu aos estados e municípios a autonomia de fechar ou de abrir as atividades econômicas.

Mandetta não saiu por ser um progressista dentro do governo, saiu por ser midiático e por estar ganhando mais espaço na imprensa que o próprio Presidente, numa disputa restrita à direita e à extrema-direita do país. Teich não foi escolhido por ser contrário ao que Mandetta defende, mas por ser mais discreto. Bolsonaro, ciumento e vaidoso, apenas quis anular o protagonismo do Ministério da Saúde e retomar os holofotes para si – e apenas para si, pois não admite concorrência em seu governo.

Assim como Mandetta não era solução de nada, Teich não o será. Seus viés empresarial e de qualidade de gestão na saúde é o ponto a preocupar, pois ele pode, principalmente após a crise, propor ações de privatização para o SUS em ritmo mais acelerado que o de Mandetta.

Triste é o país onde a COVID-19 não é o inimigo mais letal da população. Nosso inimigo mais letal é quem deveria nos proteger: o governo. Independente de quantos ministros entrem ou saiam, não há solução enquanto o Presidente e o projeto político forem os atuais.

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