Postagem atualizada em 19/10/2018 às 23h53
As pesquisas de intenção de voto que mostram Jair Messias Bolsonaro bem posicionado na corrida presidencial deste ano vêm despertando diferentes reações entre os movimentos progressistas. Ninguém estranha que grupos da elite apoiem o capitão da reserva do Exército, uma vez que suas propostas visam sufocar quem questiona a ordem econômica e social. Também não é surpreendente que setores das classes médias vejam em suas posições sobre segurança pública o rigor capaz de barrar as ameaças ao que conquistaram.
Do mesmo modo, é compreensível que o candidato do Partido Social Liberal (PSL) seja aplaudido pelo empresariado ao confirmar Paulo Guedes, como o ministro que definirá os rumos econômicos do país. Afinal, privatizar aceleradamente as estatais, reduzir o tamanho do estado e os impostos, fazer com que instituições financeiras privadas operacionalizem a Previdência Social, acabar com a demarcação das terras indígenas e flexibilizar a política ambiental são projetos que soam como música para o capital que anseia por investimentos de baixo risco e livres de compromissos sociais.
As coisas se complicam quando percebemos que parte das intenções de voto vem das periferias e de pessoas que foram beneficiadas pelos programas sociais dos governos petistas ou que, por sua condição social, se supõe que deveriam defender posições opostas às do ex-militar.
Então… como explicar isso? Obra do acaso? Fruto da ignorância do “Zé povinho”? Ou resultado de uma somatória de fatores que o afastamento da realidade e dos sentimentos populares nos impede de ver?
As reflexões que seguem trazem à tona algumas das respostas possíveis a partir da compreensão do senso comum, delineada nos escritos de Antônio Gramsci, das percepções que estas possibilitam. Outro alicerce deste escrito são os resultados de duas pesquisas qualitativas, cuja leitura recomendamos desde já.
Povo burro? Ingrato? Sem consciência?
Diante de derrotas ou de respostas inesperadas, é comum que dirigentes e ativistas de organizações políticas, sindicais e sociais apontem o dedo contra a falta de consciência do povo. Longe de entender o que se vê pelos olhos dele, esta postura impede uma análise das ações desenvolvidas em seu meio, dos efeitos colaterais indesejados que elas produziram e, sobretudo, das compreensões que vinham ganhando corpo entre as pessoas. Por isso, nosso primeiro passo será no sentido de resgatar o comportamento típico do senso comum e de avaliar as chances reais de uma reflexão crítica a partir de suas características.
De início, é importante destacar que as posturas e as reações do homem-massa e da mulher-massa deitam raízes em valores, ideias, percepções e vivências das mais diversas origens, frequentemente incorporadas de forma bizarra e incoerente, e cujo critério de verdade está no pensamento e no comportamento da maioria. Em outras palavras, o que a maioria acredita ser verdadeiro é aceito como verdade. Ainda que haja sempre certa dose de experimentação em relação ao novo, quando muitos fazem ou dizem a mesma coisa, não há como acreditar que possa estar errada. Pouco importa a composição desta maioria e como ela foi convencida, o que vale para o senso comum é se sentir parte do grupo.
O silêncio e o aparente concordar diante de quem apresenta posições contrastantes raramente são sinônimos de adesão e, assim que o interlocutor se afasta, as pessoas costumam revelar que se tratava de uma postura para não criar caso, para não se indispor com alguém do qual se pode vir a precisar, ou, simplesmente, para encurtar a conversa. O que muitos confundem como aprovação ao que está sendo feito e comunicado, não passa de um comportamento que evita debater ideias com quem fere o pensamento da maioria. Por isso, ainda que, aparentemente, as novas ideias pareçam ter sido aceitas de bom grado, pode levar décadas para que elas se consolidem em práticas e percepções comuns.
Em outras situações, a distância entre o pensar e o agir das pessoas simples, observada na convivência diária, revela a coexistência de visões de mundo contrastantes: uma afirmada em palavras, de acordo com as conveniências e as necessidades do momento; outra revelada no cotidiano da ação. Uma coisa é o que se diz, por exemplo, diante do padre, do pastor, do professor, do policial ou de qualquer autoridade cuja posição define o que é certo e errado e, com base nela, pode emitir um julgamento que fere o indivíduo. Outra, bem diferente, o que se faz e se pensa ao praticar o “proceder” da maioria no ambiente circunstante.
Longe de ser uma orientação coerente baseada em princípios éticos definidos, o “proceder” reúne comportamentos ambíguos e contraditórios, fruto de anseios, frustrações, e limites que, nas periferias das grandes cidades, guardam uma relação direta com um ambiente onde a convivência é sempre difícil. Nele os traços confusos de quem busca a afirmação individual se mesclam com a necessidade de sobreviver na adversidade, de manter a integridade possível num cenário cuja imprevisibilidade é atribuída à perda de valores morais e ao turbilhão de paixões, violências, ódios, amores, rancores ou desforras que levam a esquecer do que é considerado justo e correto.
Raramente acompanhadas de reflexões críticas, as posições de senso comum têm as aparências como referencial convincente e a separação maniqueísta entre o bem e o mal como guia nos momentos críticos. Quanto maior a “desordem” causada por acontecimentos, ideias e vivências, mais o senso comum tende a se reportar a elementos simples, tidos como naturais e, portanto, justos, para posicionar as reflexões do indivíduo e do grupo.
Sendo assim, percebemos, por exemplo, que é impossível dizer quanto tempo será necessário para as pessoas comuns incorporarem sem resistências as novas formas de família. Mas, convencidas de que os problemas da sociedade têm como base uma crise da família, elas não demorarão a apontar o núcleo formado por pai, mãe e os filhos nascidos desta união como imagem da família ideal, como o lugar no qual autoridade e respeito convivem com o amor de um homem e uma mulher, segundo aquela que, para o senso comum, é a ordem natural das coisas.
Sem perceber o papel das relações de poder na formação dos modelos históricos de família, na produção da marginalização social e das próprias dificuldades econômicas que atormentam o núcleo familiar, o povo simples vê na desestruturação da família tradicional a causa da crise da sociedade. Uma crise que, nesta perspectiva de análise, guarda relação apenas com problemas individuais e morais e cuja superação aponta a educação como o âmbito onde se formam pessoas honestas, religiosas, respeitadoras, capazes de zelar para o bem-estar coletivo.
Sabendo disso, culpar o senso comum pela sua incapacidade de compreender as tramas sobre as quais se desenrola a vida em sociedade é acusá-lo de não dar conta de uma tarefa que, estruturalmente, não tem condições de realizar.
Bolsonaro versão senso comum
Diante do que dissemos, é fácil perceber porque, longe de oferecer planos elaborados, Bolsonaro se mostra como quem acredita na família, na religião, na autoridade, na disciplina. O capitão da reserva se apresenta como pessoa de princípios, pronta a botar ordem na casa, a defender valores desmoralizados e excluídos do debate público pelos governos anteriores, a zelar por eles com a dedicação de quem ensina a ser gente, a ter respeito, impondo regras e limites cujos benefícios serão vistos por todos.
De acordo com a pesquisa da Professora Esther Solano, para o senso comum, o que prova a sua determinação e honestidade é o jeito de ele se colocar contra o sistema vigente, fugindo do politicamente correto com frases fortes, irreverentes, que não medem palavras. Estas atitudes que o diferenciam dos demais políticos são vistas como sinais de que ele está realmente disposto a varrer a sujeira da política institucional e botar ordem na casa. Para o homem-massa e a mulher-massa, o fato de ele dizer o que pensa, sem papas na língua e sem se importar com os comentários que virão é bem mais importante do que o conteúdo de suas falas. Declarações racistas contra indígenas e quilombolas, frases machistas e preconceituosas são perdoadas como exageros atribuídos ao passado militar, valorizadas pela coragem de fazer afirmações fortes e apreciadas como expressões de rebeldia.
O centro das polêmicas de Bolsonaro nunca se dá em torno de questões econômicas, mas sempre de temas como a redução da maioridade penal, o combate ao homossexualismo, a militarização do ensino, o ataque aos direitos humanos (vistos como direitos de bandido), o endurecimento das penas e assim por diante. As soluções que apresenta são traduzidas em frases simples e compreensíveis, em mêmes engraçados, que não distribuem culpas nem debatem projetos, mas, ao colocá-lo em sintonia com o sentimento popular, ganham a sua adesão.
Assuntos delicados como a política econômica, a reforma tributária e da previdência social, que podem ter consequências devastadoras para as maiorias, são evitados ou esvaziados de conteúdo ao serem reduzidos a falas soltas ou frases de impacto. Desta forma, o debate se torna passional, sem qualquer reflexão crítica e sem elementos que permitem vislumbrar os desdobramentos reais do que é anunciado.
Para o senso comum, o “guerreiro” Bolsonaro é confiável à medida que apresenta três características fundamentais: a honestidade, a proximidade com o povo e o carisma que o diferencia dos demais políticos. A mesma pesquisa da professora Esther Solano indica que estas são as atitudes que levaram um número considerável de votantes a escolher o Lula em 2002 e 2006, e que, ao verem-nas negadas pelos acontecimentos subsequentes, fazem com que parte dos antigos eleitores opte agora por Bolsonaro.
As diferenças biográficas das duas personagens e os chamados “verdadeiros propósitos” pouco importam, pois, para o povo simples, o que vale é a sintonia que as palavras do candidato conseguem criar e a vontade que ele demonstra de realizar o que pretende. Convencido de que querer é poder, o senso comum não se preocupa com os elementos da realidade que negam o otimismo da vontade e nem com a possibilidade desta projetar oportunidades irreais, mas torce para que cada um tenha o que merece e mereça o que tem numa sociedade que valoriza o mérito individual.
O discurso de Bolsonaro dialoga com esta percepção popular e soma elementos preocupantes. O primeiro deles é a forma pela qual a sua postura alimenta disfarçadamente a desigualdade ao estabelecer o mérito como critério único de admissão em concursos e premiação. O segundo fortalece o preconceito ao desqualificar e condenar o que ajuda a entender e aceitar as relações humanas que, para o candidato do PSL, não são parte da lei natural. Ao mesmo tempo em que não nega a existência de quem passa necessidade e dos preconceitos, o ex-capitão do exército acusa os pobres, os movimentos negros e os grupos de LGBTs de se fazerem de vítima para obterem regalias do Estado, colocando os demais cidadãos em posição de desvantagem. Para ele, o Bolsa Família e os demais programas assistenciais são fábricas de vagabundos que vivem à custa dos impostos pagos por todos e se transformam em força eleitoral que elege os políticos de sempre. Do mesmo modo, as cotas raciais estariam colocando os estudantes brancos em posição de inferioridade e menosprezando a capacidade de os negros entrarem nas universidades sem a ajuda do Estado, aumentando assim o racismo, colocando os negros no papel de vítima e legitimando uma injustiça em relação aos brancos cujos resultados em concursos públicos revelam um desempenho superior aos que têm acesso pelas cotas.
O pressuposto pelo qual as oportunidades são iguais para todos e que o esforço individual define o mérito de cada um, Bolsonaro simplesmente apaga o fato de que não há nenhuma igualdade de condições entre quem nasce em famílias de classe média-alta para cima e quem viu a luz nas favelas e grotões do país. O plano de devolver aos setores mais favorecidos da sociedade o pouco que foi tirado deles nos últimos 16 anos precisa apagar com um suposto restabelecimento da igualdade o fato pelo qual, ao tratar de forma igual pessoas em situações sociais diferentes, a desigualdade terá no seu governo um aliado de primeira ordem.
Um segundo elemento, guarda uma relação direta com os estudos da realidade realizados através de pesquisas científicas e levantamentos que, além de dimensionar os problemas, permitem visualizar suas causas profundas. As propostas de Bolsonaro não estão alicerçadas em dados estatísticos ou análises que superem o nível das aparências. A percepção superficial das causas imediatas dos acontecimentos sociais constitui a base real tanto das suas propostas como do debate das ideias que estabelece com o senso comum. Permanecer neste patamar não serve apenas para que as pessoas vejam a confluência entre suas propostas e a leitura da realidade proporcionada pelo senso comum, mas, sobretudo, para fazer com que os aspectos imediatamente visíveis impeçam de procurar os elementos da realidade que só aparecem numa reflexão crítica aprofundada.
Usar o visível para cegar as pessoas costuma funcionar bem quando os destinatários das mensagens costumam agir com base na fé, não dispõem de critérios de análise da realidade e atuam confiando nas palavras e na pessoa que as pronuncia. Nas periferias, esta postura guarda forte relação com o fato de as igrejas serem o espaço em que homens e mulheres se sentem acolhidos e nas quais a fé é o âmbito em que buscam respostas para os problemas cotidianos. Partidos, sindicatos e movimentos não aparecem nas pesquisas como fóruns nos quais as pessoas conhecem e interpretam o mundo e nem como ambientes com os quais elas criam vínculos afetivos, de participação e convivência. Esta somatória de elementos facilita a ação da direita conservadora que dialoga com o sentimento popular pedindo um ato de fé no futuro, sem oferecer nada além de palavras e esperanças vagas.
Preocupado em manter esse tipo de diálogo, o candidato do PSL não hesita em desqualificar estatísticas, análises e pesquisas sérias cujos resultados contrastam frontalmente com as suas afirmações. Sem trazer um único dado que prove a manipulação da realidade, Bolsonaro acusa universidades e instituições de pesquisa de serem de esquerda e usarem seus recursos para doutrinarem os jovens. O que parece absurdo a quem conhece minimamente estes ambientes se transforma é recebido como um sinal de alerta pelo senso comum.
Este comportamento intrigante do povo simples tem como base a sua compreensão do que é ser de direita e de esquerda. A pesquisa da Fundação Perseu Abramo que, entre outras coisas, buscou compreender esta questão, se deparou com uma concepção intrigante. De fato, nas periferias paulistas, predomina a visão pela qual “Direita é alguém direito, correto”. Enquanto “Esquerda é quem vive reclamando”. Para o senso comum, portanto, ser de direita guarda relação com o estar do lado de quem faz tudo certinho, e não com o tipo de soluções com as quais os governantes respondem aos problemas sociais.
Se isso não bastasse, a pesquisa da professora Esther Solano sinaliza que outro apoio importante às propostas de Bolsonaro vem de setores da população que se beneficiaram dos programas sociais criados nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), melhoraram de vida graças às possibilidades que lhes foram proporcionadas e hoje assumem expressões próprias do antipetismo militante. A distância que estes grupos populares mantêm em relação às propostas do PT está relacionada à percepção da sua nova identidade social. Independentemente da renda e da ocupação, parte das entrevistas nas pesquisas citadas revela que as pessoas se autoclassificam como sendo de classe média pelo simples fato de terem acesso a moradia e alimento ou, numa variante parecida, se assumem como classe consumidora.
As centelhas de afirmação social conseguidas em épocas de forte redução do desemprego e políticas públicas voltadas às pessoas de baixa renda fazem com que este grupo veja a sua “nova condição social” como um sinal de diferenciação em relação aos mais pobres e a ampliação da distância que os separa deles como uma necessidade para realizar as novas aspirações. Por isso, programas sociais que eram vistos como estímulos e possibilidades de melhorar de vida, são agora obstáculos para novos voos à medida que seu funcionamento não se baseia exclusivamente nos méritos pessoais. Para quem saboreou as migalhas da cidadania do consumo, o voto no PT passou a ser um voto típico de pobres, ao passo que os interesses atuais demandam uma opção partidária que vai de encontro aos novos anseios.
Apesar disso, parece impossível que quem vive na base da pirâmide social esteja preste a votar em quem, pelos planos de governo, vai favorecer os que estão no topo e piorar as suas condições de vida. A pesquisa da Fundação Perseu Abramo traz elementos interessantes para compreender este fenômeno. No discurso dos entrevistados, não aparece nenhuma referência à exploração e nem à oposição de interesses entre trabalhadores e patrões. Para eles, o principal embate não é entre ricos e pobres e nem entre capital e trabalho. O confronto é entre Estado e cidadãos, sociedade e governantes.
Nesta forma de entender a confrontação social, os trabalhadores precisam dos patrões e vice-versa, ao passo que ambos são vítimas de um Estado que cobra impostos excessivos, sufoca as atividades das empresas com entraves burocráticos e gerencia mal o crescimento econômico, trazendo problemas e prejuízos para todos. Por isso, qualquer proposta de redução do tamanho do Estado, como as que constam do plano de governo do Bolsonaro, é saudada como uma possibilidade de crescimento e de progresso por um senso comum cuja ideia de cidadania não tem nenhuma relação com as medidas necessárias para combater a exploração do trabalho e a apropriação privada da riqueza produzida por todos.
Não precisamos ser sociólogos ou cientistas políticos para identificar nestas posições a sedimentação das ideias centrais sobre o Estado e os problemas sociais com as quais as elites foram permeando a visão de mundo do senso comum desde os anos 90. Um trabalho paciente que, em vários momentos, contou com o apoio de setores do sindicalismo, do próprio PT, de inúmeros movimentos sociais cuja ideia de cidadania carecia de uma reflexão sobre legitimidade de direitos e de referências à exploração que seguia marcando o passo das novas demandas do capital.
As arapucas do medo
Ao contrário do que os militantes costumam pensar, raramente as causas que motivam a ação dos partidos e dos movimentos sensibilizam o senso comum mais do que as questões que estão sob os olhos de todos e do sentido que a visão da maioria lhe atribui. Os problemas diários enfrentados para um atendimento no posto de saúde ou nos hospitais, na busca do emprego, no acesso ao transporte, com a violência que ronda o bairro etc, fazem esses temas subirem ou descerem na lista de prioridades a depender da gravidade e da constância com a qual atingem o cotidiano do povo.
No que diz respeito à violência, o povo simples tem a impressão de que as coisas fugiram do controle. E não é para menos. Em 2017, o Brasil somou 59.103 homicídios, um a cada 9 minutos. No mesmo ano, só na cidade de São Paulo, entre furtos e roubos, foram registradas 347.533 ocorrências, uma a cada minuto e meio. E isso sem contar os estupros, o tráfico e os problemas criados pela atuação das forças policiais. Diante deste cenário, a pergunta que surge naturalmente não pode ser outra: o que fazer para pôr fim à violência? Que medidas de efeito imediato vão reduzir o medo diariamente experimentado e melhorar substancialmente a segurança pública?
Quanto maior o medo, maiores e mais numerosos os fantasmas que ele cria. Quanto mais assustadoras as crônicas policiais, mais a insegurança aumenta e leva a ver ameaças e inimigos a qualquer hora e em qualquer lugar. Quem tem medo não quer explicações e sim ações fortes e imediatas que permitam viver a rotina sem correr riscos e sem qualquer ameaça ao que foi conquistado pelo trabalho. As perguntas sobre as causas da violência desaparecem diante da urgência de ações imediatas. E, à medida que o medo supera a indignação, a visão do todo é ofuscada pela crença de que o mal está no DNA dos criminosos e que é inútil esperar deles uma mudança de vida.
Aos poucos, o medo se torna mestre do desaprender, espalha uma sensação de impotência bem superior ao que seria razoável esperar, sufoca as pessoas, supervaloriza as respostas imediatas, faz com que a lógica da segurança capture a liberdade e restrinja cada vez mais os espaços em que esta pode se manifestar.
Vista pelos olhos do medo, a realidade pede medidas enérgicas como leis mais restritivas, punições exemplares, redução da maioridade penal, efetivos policiais em cada esquina, mais presídios, esquemas de vigilância ostensivos etc. Ao atingir este patamar, os sofrimentos imediatos são vistos como necessários na construção de um futuro sem medo e as pessoas depositam suas esperanças nas mãos de grupos e indivíduos que se apresentam como destemidos e cuja ação precisa do medo para disfarçar os interesses que contrariam as próprias expectativas do senso comum.
Em 2015, uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em regiões com altos índices de criminalidade (como Heliópolis, Perus, Guaianazes e Osasco) fornece elementos que ajudam a entender como, ao movimentar o senso comum, o medo produzido pela violência propõe saídas que contradizem a própria percepção da realidade de quem se movimenta nela.
Baseada em 600 entrevistas realizadas com homens e mulheres acima dos 16 anos e renda inferior a dois salários mínimos, a enquete revela que: para 93% dos entrevistados, eram necessárias ações mais duras para combater o crime nesses bairros; 90% eram a favor de aumentar a presença da polícia nas ruas; 74,7% apoiava a redução da maioridade penal; 74% votariam num político “linha dura”. Ao mesmo tempo em que 66,7% reconheciam que a polícia era violenta; 62,6% afirmavam que a atuação dela era racista; e 60% eram contrários à ideia de que devia matar bandidos.
A aparente contradição entre o desejo de ações mais duras e a percepção das características da violência policial se deve ao mecanismo pelo qual o medo se transforma em esperança de que é possível ter uma polícia que cuida do cidadão, treinada para distinguir os bons dos maus, capaz de atuar com rigor contra os criminosos, impedir suas ações e dissuadir quem pretende se voltar para o crime. Paralelamente a este processo e sem nenhuma reflexão crítica imediata, a sensação de crescente insegurança constrói o consenso pelo qual a punição é o remédio mais eficaz para combater o crime, sem se preocupar em conhecer as suas causas profundas e até esquecendo-se das vivências cotidianas. O discurso de Bolsonaro vai de encontro a esta demanda popular apresentando medidas estritamente punitivas como a de endurecer a vida nos presídios, reduzir a maioridade penal, aumentar as penas, criar a prisão perpétua, expandir o porte de armas, acabar com a vitimização do bandido, dar poder e proteção à polícia.
Esta convergência de propósitos é parcialmente questionada apenas por pessoas cuja experiência diária entra em choque com as afirmações do ex-militar. Quem tem parentes presos e vive o cotidiano das periferias tende a repensar sua adesão às posições que invocam, por exemplo, a necessidade de transformar presídios em masmorras onde os presos não têm sequer um colchão para dormir, devem sofrer maus tratos e apodrecer ou uma polícia cuja “mão de ferro” se traduz em violência sem controle.
O convite à reflexão é dificultado pela ausência de propostas de políticas públicas, cujos rumos e consequências permitiriam vislumbrar o futuro que preparam. Em seu lugar, mais uma vez, encontramos apenas frases soltas, afirmações que dão voz às expressões que já estão presentes no senso comum ou critérios cujo sentido muda a depender da conveniência.
Para explorar o medo, nada melhor do que criar um inimigo cujo rosto muda de acordo com as circunstâncias. No binômio bandido-cidadão de bem, o primeiro pode assumir as feições de um assaltante, de um traficante, de um estuprador, de um corrupto, mas também de um sem terra ou sem casa, de alguém considerado comunista ou de quem duvida da lógica simplista pela qual, na luta contra o mal, basta questionar as posições do candidato para ser qualificado como de esquerda, vagabundo ou conivente com a realidade atual. E, nas expressões corriqueiras do grupo de Bolsonaro, enquanto inimigo, o “bandido”, seja ele quem for, precisa ser aniquilado.
Nesta visão fundamentalmente moralista, o criminoso prospera graças à proteção legal que o Estado lhe oferece, à impunidade e à punição do policial que mata os bandidos. Por outro lado, o cidadão de bem (sem nunca definir o seu rosto) está no papel de vítima abandonada à própria sorte. Um processo que apure o que de fato ocorreu, segundo as diretrizes da carta dos Direitos Humanos da ONU, é sinônimo de defender vagabundos e deixar desprotegido quem é honesto.
Pouco a pouco, a culpabilidade do sujeito sai do âmbito do direito e começa a percorrer os caminhos de um estado de exceção onde qualquer abuso policial é perdoado. Ao mesmo tempo, o processo judicial garantido pela legislação aparece como um fator que prejudica a sociedade à medida que é apresentado como uma forma de soltar criminosos.
Neste contexto, o Estado que garante o cumprimento das leis é colocado no banco dos réus por arrecadar impostos que acabam servindo para proteger bandidos ao invés de cuidar dos cidadãos de bem. Enquanto os primeiros andam armados e soltos pelas ruas ou vivem sem trabalhar nas cadeias, sustentados por gente honesta e trabalhadora que paga seus impostos, os segundos precisam ficar presos e desarmados em suas casas com medo de perder seus bens e a própria vida. Uma situação que faz o povo simples clamar por alguém que tenha coragem de controlar o Estado, pôr ordem na casa, priorizar os gastos com os cidadãos de bem e não com os criminosos.
Ao senso comum incapaz de vislumbrar outras saídas, Bolsonaro se apresenta como alguém que, ao se candidatar à Presidência da República, está “cumprindo uma missão de Deus”. Mas esta missão sagrada encobre outras realidades preocupantes. Vejamos alguns exemplos:
1) Ao falar da violência na convenção do PSL que confirmou a sua candidatura, Bolsonaro afirma que, se eleito, vai manter a intervenção do Exército no Rio de Janeiro, mas pretende excluir a punição dos soldados que matarem civis em operações de segurança. E acrescenta: “Se estamos em guerra, os dois lados podem atirar. Quero dar meios para o policial não morrer. Se ele não pode atirar, vamos tirar a arma do PM e dar um buquê de rosas pra ele carregar”. A impressão que as mensagens querem passar é simples: na guerra contra o mal tudo é permitido; nela, o policial morre porque não pode disparar a sua arma enquanto os bandidos agem como um inimigo impiedoso; se deixarmos o policial atirar sem reservas, vai morrer muita gente, mas tudo se resolve.
Sendo assim, perguntamos: as mortes de civis em ações policiais aumentaram ou diminuíram nos últimos anos? Quantas mortes decorrentes da ação policial são investigadas e levam à punição dos agentes envolvidos? Quantas punições guardam relação com a participação de policiais nas milícias, nas situações de conluio com o tráfico, em chacinas documentadas? Como explicar que o maior número de mortes de policiais civis e militares não se dá em serviço e sim fora dele?
Quando se analisam os números divulgados nos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a realidade da violência policial e dos policiais assassinados no Brasil, entre 2011 e 2016, se revela diferente da que é subentendida por Bolsonaro. Vejamos os dados no quadro a seguir.
Quadro 1: Número de civis mortos por policiais e número de policiais mortos no Brasil (2011-2016)
Ainda que seja inegável o crescimento das mortes de civis e de policiais no período considerado, há uma grande diferença, tanto em números absolutos quanto em percentuais, que não deixa dúvidas sobre quem são a maioria das vítimas. A letalidade policial, provocada por membros das corporações no horário de serviço e fora dele, aumentou 275,7% e o número de policiais mortos 161,8%, um crescimento significativo, mas bem inferior ao das vítimas civis. Agora, se, depois de tantas mortes, a violência continua crescendo, significa que matar mais não é a solução.
Comparando os números de 2016 com os de 2011, percebemos que, do total de policiais civis e militares assassinados, os que morreram em serviço cresceram 43,1% e os que foram vitimados nos horários de folga aumentaram 268,1%. Infelizmente, não temos elementos para fazer uma diferenciação entre as mortes ocorridas durante o “bico” (prática que no Brasil é um recurso corriqueiro para aumentar a renda do policial), por envolvimento com o crime ou pelo fato de o policial ter sido reconhecido por criminosos e assassinado numa situação em que se encontrava sem chances de defesa. Mas, ao que tudo indica, o aumento das mortes de policiais tem uma conexão muito forte com as condições em que atuam dentro e fora do horário de trabalho e não com o direito de apertar o gatilho como as frases de Bolsonaro levam a crer. Os anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública trazem vários elementos de reflexão sobre o tema e não faltam estudos tanto sobre as mortes violentas sofridas por policiais, como em relação ao suicídio de agentes em função das condições de trabalho. Todos eles apresentam uma realidade bem mais complexa do que aquela traçada pelo candidato do PSL.
2) Numa passagem do romance “Ensaio sobre a cegueira”, o escritor português José Saramago diz que “o medo cega e nos fará continuar cegos”. Esta parece ser a aposta subjacente à releitura da ditadura civil-militar no Brasil proposta por Bolsonaro. Diante da violência que assusta e da corrupção trazida à tona pela mídia como algo que caracteriza os governos petistas, quando na verdade marca toda a história do país, os governos militares emergem como promotores de um período em que havia a ordem, em que a vida era mais segura e no qual o cidadão de bem era protegido pelo Estado. Por sua vez, a democracia é apontada como um ambiente aberto a qualquer excesso, que permitiu a instalação do caos e no qual os corruptos governam em benefício próprio. Esta forma de relacionar ditadura e democracia faz com que os militares apareçam entre os atores sociais com legitimidade suficiente para combater a corrupção e trazer de volta os valores esquecidos pelos governos que conduziram o país depois de 1985.
Bastaria uma simples procura na internet para encontrar materiais que comprovam a existência de uma relação no mínimo promíscua entre interesses privados e órgãos públicos na época da ditadura. Com a repressão e a censura impedindo qualquer investigação digna deste nome, não são poucos os casos em que a relação entre os generais e as empreiteiras que hoje estão sendo investigadas passava longe da lisura e do zelo com o interesse público alardeados por Bolsonaro.
O mesmo ocorre quando o crescimento nos anos do Milagre Econômico é desvinculado dos dados relativos ao salário dos trabalhadores. Ninguém nega que entre, 1968 a 1973, o PIB crescia, em média, 10% ao ano, com um pico de 14%, em 1973. Os números que fazem brilhar os olhos do senso comum escondem que isso só era possível em função do arrocho salarial mantido a ferro e fogo pelos governos militares. De fato, em 1974, contrariando o que qualquer economista poderia imaginar diante de tamanho crescimento da economia, o salário mínimo nacional tinha apenas metade do poder de compra de 1960. Graças a uma população que conhece pouco e nada deste período, à medida que a anistia de 1979 foi entendida como um pacto de silêncio sobre o que de fato significou a ditadura civil-militar em todos os campos da vida econômica e social do país, e ao medo que torna as pessoas cegas, Bolsonaro tem diante de si um terreno fértil para que seus discursos sejam recebidos de ouvidos abertos pelo senso comum.
3) Nas páginas anteriores, citamos alguns elementos que permitem a Bolsonaro se apresentar como alguém que se opõe ao sistema, repudia a corrupção e deseja construir um novo país. No vale tudo das aparências, a ideologia oculta uma história incômoda no que diz respeito à sua própria filiação partidária. Com 29 anos de atuação parlamentar, o candidato do PSL não é um novato da política e, ao longo da sua carreira neste campo se filiou a partidos frequentemente acusados de fisiologismo e práticas clientelistas. Vejamos.
O primeiro mandato de Bolsonaro foi como vereador do Rio de Janeiro em 1989, pelo Partido Democrata Cristão. De 1/02/1991 até a atualidade vem exercendo o mandato de Deputado Federal pelo Estado do Rio de Janeiro filiando-se aos partidos que seguem: Partido Democrata Cristão (1989-1993), Partido Progressista (1993), Partido Progressista Reformador (1993-1995), Partido Progressista Brasileiro (1995-2003), Partido Trabalhista Brasileiro (2003-2005), Partido da Frente Liberal (2005), Partido Progressista (2005-2016), Partido Social Cristão (2016-2018) e, atualmente, está no Partido Social Liberal.
Em relação ao PSL, que o lançou candidato à Presidência, poucos sabem que este partido foi mais fiel às demandas do Presidente Michel Temer do que o próprio MDB. Ao analisar a posição dos partidos com candidatos à presidência em 107 votações de interesse do Planalto, a consultoria Arko Advice concluiu que o PSL de Bolsonaro acompanhou o governo em 67,73% dos casos, seguido pelo Movimento Democrático Brasileiro com 64,34%, pelo Partido da Social Democracia Brasileira com 30%, pelo Partido Democrático Trabalhista com 23%, pelo Rede Sustentabilidade com 18,4% e pelo Partido dos Trabalhadores com 5,7%. Então, como conciliar a posição do PSL com o discurso de Bolsonaro que aparenta se opor ao sistema vigente sendo que sua atuação parlamentar ocorreu inteiramente no interior dele? É possível construir um país tão diferente do atual num partido que apoia um presidente cujo índice de aprovação caiu de 5% em abril para 4% em junho e tem um governo avaliado como ruim e péssimo por 79% dos entrevistados? Ou será que a ampliação do uso da força policial se destina justamente a sufocar os protestos pelos cortes de direitos que o seu governo se dispõe a fazer para satisfazer os interesses empresariais?
Tudo indica que, para uma elite cujos projetos de futuro se sustentam num trabalhador barato e superexplorado, a ideia de um governo que atua com mão de ferro contra qualquer perturbador da ordem é uma proposta sedutora. As dúvidas em relação a ela dizem respeito à capacidade de manter um clima político e social que não crie empecilhos ao processo de acumulação em função das reações dos movimentos e das condenações nacionais e internacionais que esta postura pode despertar.
Os eleitores que ocupam as camadas mais baixas da pirâmide social temem apenas que a esperança de ordem e progresso se transforme em medo de que nada seja resolvido. Para os trabalhadores organizados, a certeza de que além da exploração, o governo não titubeará um usar a força para mergulhar no silêncio os sofrimentos da progressiva extinção dos seus direitos.
Bolsonaro pode não dispor de uma máquina partidária capaz de sustentar a sua candidatura, cair nas pesquisas, não se eleger e, com isso, fazer com que tudo não passe de um susto. Mas é fato que suas ideias foram somando adesões e consensos onde menos esperávamos e os votos que ele recebeu nos pleitos em que se candidatou a deputado federal mostram que o seu crescimento não pode ser considerado casual e inesperado.
Com a sua candidatura à Presidência da República, o Brasil vê emergir uma realidade que há anos tem se tornado comum em muitos países onde o avanço da direita ganha cores preocupantes. Diante da piora das condições de vida, da ausência de uma alternativa programática de esquerda construída no cotidiano da luta, de movimentos sociais que não relacionam suas pautas com a exploração que grassa nas relações de trabalho e da confiança das pessoas na capacidade de o sistema proporcionar chances futuras de bem-estar e ascensão social, uma parte significativa da classe trabalhadora tem encontrado na direita o discurso que se sintoniza com sua preocupação de não perder o que conseguiu acumular e de ter a chance de melhorar de vida. Quem tem medo não se pergunta até a que ponto a sua boa fé está sendo usada para construir um ambiente que pouco ou nada reflete seus interesses, apenas confia em quem revela firmeza em suas proposições e dialoga com sua insegurança incorporando suas ideias e percepções da realidade.
Culpar o povo por esta realidade é não perceber que a cegueira do senso comum impede que ele tome consciência das causas profundas dos acontecimentos que o cercam. A possibilidade de romper o jugo do medo e a lógica perversa que alimenta depende de uma inserção no cotidiano das pessoas que seja capaz de transformar a indignação individual em envolvimento na luta coletiva.
Para cumprir esta tarefa, Gramsci diz que entre o agente educador da massa (que ele chama de intelectual orgânico) e o povo simples é preciso que haja “a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática”, ou seja, uma relação íntima e orgânica que permite elaborar e tornar coerentes os elementos que as massas revelam com sua prática. O contato que vem do partilhar a mesma realidade e do trabalho incessante para dar vida a processos de luta que tenham as pessoas comuns como sujeitos da ação, e não apenas como eleitores de quem vai agir em seu nome, permite a passagem do “sentir” do povo ao “saber” do intelectual e vice-versa. É através dela que podemos evitar o erro pelo qual ativistas, militantes e dirigentes acreditam que é possível saber como agir e o que dizer sem compreender o que de fato as pessoas sentem e vivem.
Se é verdade que o povo simples se movimenta na cegueira típica do senso comum, as lideranças sindicais, sociais e partidárias não conseguem ver que a atuação e os discursos descolados do cotidiano da classe são insuficiente para formar uma consciência crítica. Longe de ser um raio no céu azul, o voto que o povo promete dar ao Bolsonaro guarda uma relação direta com esta falha que a aposta majoritária dos movimentos no cenário institucional passa longe de corrigir.
Podemos seguir indagando o que tornou possível a ascensão de Bolsonaro, que espaços a esquerda e os setores progressistas deixaram de ocupar e o que os distanciou da realidade popular a ponto de perderem de vista os caminhos que ela vinha trilhando. Ou, passadas as eleições, vamos esperar os próximos desdobramentos da realidade prontos a culpar novamente o povo caso os fatos se afastem do que havíamos previsto. Neste caso, o indicador que acusa o homem-massa e a mulher-massa de não saber votar, não ter consciência etc, terá sempre três dedos que, dobrados em nossa direção, seguem questionando silenciosamente nossas atuações em seu meio.
Artigo de Emilio Gennari (educador popular)