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Solidariedade à Êmy Virgínia: ex-reitor da maior Universidade Federal do Brasil escreve carta em apoio à docente do IFCE

Postagem atualizada em 16/01/2024 às 17h29

Nesta terça-feira (16/01) a luta pela readmissão de Êmy Virgínia Oliveira da Costa, professora trans do IFCE, demitida injustamente em um PAD irregular, ganhou mais visibilidade ainda, com o lançamento de uma Carta Aberta do professor e ex-reitor da UFRJ, Roberto Leher.

Na Carta, Leher expõe os motivos pelos quais considera “preocupante” e “contraditória” a exoneração de Êmy e pede que o Instituto Federal corrija esse ato “injusto e eticamente inaceitável”. Confira abaixo o texto na íntegra:

IFCE: Ainda é possível corrigir um ato injusto e eticamente inaceitável, a demissão de Êmy Virgínia Oliveira da Costa

Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) se consolidaram como espaços de imensa legitimidade acadêmica, científica, tecnológica e cultural, assegurando, em todo país, lugares abertos aos desafios dos povos e às formas de convivência radicalmente comprometidas com a superação de todas as formas de preconceitos, pois abertos ao tempo. A vida de milhares de jovens está sendo transformada e dignificada pela excelência de seus cursos. O IFCE está escrevendo essa história.

É preocupante – e contraditório com a concepção educacional dos IFs – a possibilidade de exoneração da professora Êmy Virgínia Oliveira da Costa, a primeira docente trans do IFCE. Desde seu ingresso na Instituição, a referida docente demonstrou incrível força ao enfrentar preconceitos, estereótipos e dogmas, envolvendo sua própria vida e as relações com seu ambiente de trabalho. Em meio a tais adversidades, foi aprovada para cursar seu doutorado na Udelar em 2019, a mais prestigiosa instituição do Uruguai, conquista apoiada pelo colegiado de seu Departamento.

Entretanto, a docente solicitou mudança de campus e encaminhou pedido para que seu novo Departamento igualmente formalizasse a autorização para cursar adequadamente o seu doutoramento. O processo de regularização de sua capacitação somente foi respondido após longos três anos (e indeferido!).

Comprovando seu agir acadêmico comprometido com os estudantes e o IFCE, ajustou horários e antecipou suas aulas, que foram efetivamente ministradas, como comprovado pelos registros dos estudantes.

Entretanto, denúncia anônima caracterizou todo seu empenho para viabilizar seu doutorado e, ao mesmo tempo, a formação de seus estudantes, como um período de absenteísmo e de faltas abusivas, ignorando seu contexto psicossocial. De modo surpreendente, o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) instaurado configurou este período como de inassiduidade habitual, o que fundamentaria a penalidade de demissão.

Em virtude da complexidade do período em que a docente Êmy estava mudando de campus, após ter obtido a autorização de seu antigo colegiado para cursar seu doutorado, assim como de seus complexos desafios pessoais, a averiguação da denúncia deveria ter sido iniciada por uma sindicância, justamente para que todas as facetas da situação laboral da docente fossem consideradas. Caso esta tivesse reunido evidências que exigissem uma apuração mais sistemática, caberia a instauração de um PAD. Em virtude das características específicas do processo, o bom senso sugere que a comissão do PAD deveria ter sido constituída também por servidores docentes, visto a necessidade de analisar de modo mais sistemático o trabalho acadêmico da docente em horários alternativos. Contudo, não foi realizada a sindicância prévia e a comissão do PAD não considerou as especificidades das atividades de ensino e sua atitude proativa e de boa fé de buscar regularizar o afastamento para cursar o doutorado. E, para agravar ainda mais as arbitrariedades, o assunto, em virtude de sua gravidade, deveria ter sido examinado pelo Conselho Superior, como é prática usual nas Universidades Federais e nos IFs.

A autonomia administrativa é uma prerrogativa constitucional que permite examinar os princípios da administração pública considerando as especificidades institucionais das Universidades e Institutos. A efetivação dessa prerrogativa tem como lugar privilegiado o Conselho Superior da Instituição, que não pode deixar de examinar o tema, de analisar as circunstâncias e de avaliar de modo rigoroso a conduta da servidora que efetivamente demonstrou boa fé, apreço e compromisso com a Instituição, os colegas e os estudantes.

Os novos tempos democráticos devem arejar a vida das instituições. No último quadriênio, o uso político e para fins discriminatórios de PADs foi generalizado, especialmente nas instituições sob intervenção, como ocorreu na vizinha UFC. É preciso restabelecer as práticas democráticas em nome dos princípios da impessoalidade, da publicidade e da moralidade no trato da administração pública. O compromisso democrático da comunidade do IFCE é um patrimônio da educação brasileira; a presença da docente Êmy na Instituição é uma reafirmação desses valores acadêmicos e democráticos.

Rio de Janeiro-RJ, 16 de janeiro de 2023
Roberto Leher (professor e ex-reitor da UFRJ)

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